Eu e os dentes
- Ana Basaglia
- 3 de mar. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 4 de jul. de 2022
Semana passada fui no consultório da dra. C., finalizar uma etapa do tratamento dentário que tô fazendo. Ela é endodentista (cuida de canal) e uma profissional absolutamente equilibrada entre ser carinhosa e objetiva, dedicada e reconhecida por seus pares, num consultório cheio de parangolés, i.e., aquele mix de equipamentos de alta tecnologia e de hospitalidade que fazem diferença. Foi ela que vaticinou que eu devia extrair um dente e fazer um implante, mas depois foi ela que topou retratar esse canal, até ficar satisfeita com o resultado radiografado e declarar "então vamos acompanhar anualmente e, enquanto ele se mostrar estável, vai poder ficar aí na sua boca". Enquanto eu estava de boca aberta, fiquei pensando que consultório de dentista representa uma arte da comunicação, né? Quer sugador? Hãhãmm. Tá doendo? Hãhãmm.
Vou usar o instrumento xpto e vai fazer uma pressão, ok?
Hãhãmm.
Como chama mesmo essa música?
Hãhãmm.
Nossa, você assistiu o documentário do Tim Maia, foi sensacional, né?
Hãhãmm.
Tá calor, quer que ligue o ar?
Hãhãmm.
Tá indo bem, viu, já já acaba...
Hãhãmm.
Como chama mesmo a assistente da dra. A.?
Hãhãmm.
Ahh, vou radiografar de novo, licença.
Hãhãmm.
Mais sugador?
Hãhãmm.
Tá acabando mesmo, viu...
Hãhãmm.
A primeira dentista que fui me causou traumas pra toda vida. Eu devia ter uns 5 ou 6 anos, ela obturava minhas cáries a seco, era tão pouquinho, tão pequenininho, nem valia a pena anestesiar, não vai doer nada, prometia a carrasca... Eu, obviamente, não conseguia parar quieta e de boca aberta, então a dra. S. colocava um aparelho de ferro pra mantê-la aberta. [dei uma googlada, nenhuma das imagens pesquisadas se parece com a lembrança que eu tenho daquele treco enorme e grosseiro na minha boca] E lá ia ela com o motorzinho zzzziiiiiiiimmmmmm numa cárie pequenininha que nem valia a pena anestesiar e que não tava doendo tanto assim, vai... Pâ-ni-co.
Nunca mais gostei de ir ao dentista. Quando tinha dor, tentava ignorar, fazer de conta que não tava acontecendo nada. Junto a uma mãe atolada de afazeres domésticos e que não enxergava a necessidade de uma higiene bucal decente (ou acreditava que criança ia fazer essa higiene sem supervisão adulta) e a um pai ausente (porque papel do homem é só trazer dinheiro pra casa), associada a uma natureza azarada para a saúde bucal (inclusive com muitas quedas e acidentes com a boca), deu no que deu: um medo descomunal da cadeira do dentista, uma incapacidade emocional de apontar com clareza o tamanho da dor e do incômodo, uma inabilidade imensa de escolher bons profissionais, bons tratamentos, bons caminhos, uma autoestima tão fragilizada que demorei décadas para acreditar que eu poderia fazer um tratamento ba-ca-nu-do, mesmo que custasse caro. Não sou rica, não tenho grandes folgas financeiras, mas só hoje, aos 55, consegui chegar num consultório e declarar, objetivamente, o que eu espero de um tratamento e ter a segurança de saber que posso escolher, sim. Que eu me-re-ço.
Exceto a primeira dentista, não guardo mágoas dos outros profissionais que me atenderam. Eles foram corretos, dentro da ótica deles, enxergo isso. A maioria simplesmente encara a Odontologia como uma atividade comum, tem uma mancha aqui que deve ser cárie, passa o motorzinho, faz uma massinha com o material que tá na gaveta, bochecha e cospe, recebe o cheque, tchau, até a próxima (consulta ou cliente, tanto faz). Alguns foram gentis e me escutaram um pouco (mas né, cadeira de dentista não é divã de analista!). Tem a dra. E., que é uma pessoa sensata e sensível, partilhou experiências, sempre se esforçou para me oferecer um bom tratamento, dentro das possibilidades (dela e do meu bolso), e ainda trata de toda minha família. E tem, agora, o tratamento pica-das-galáxias com a dra. A., uma profissional jovem e que oferece um atendimento de excelência, altamente tecnológico, mas que inclui também OUVIR, me ouvir. Ou dei sorte, ou a Odontologia realmente avançou para além das cerâmicas-mentex, ao reconhecer o paciente como um sujeito ativo, que pode expressar e escolher como ele quer parecer, além do tratamento da sua saúde. Tô feliz. Odontologia é saúde e muito mais.
Daí hoje divaguei e lembrei que, dentre os livros que me impactaram para sempre, neste meu processo de leitura que na imensa maioria das vezes é caótico, plural, e abarca muitas e distintas áreas de interesse, consigo apontar dois que falam, de modo distinto, sobre dentes!
"As meninas", de Lygia Fagundes Telles, eu li muito jovem. Hoje sei que não compreendi a profundidade da trama, mas me impactou muito uma das personagens e os algodõezinhos nos dentes... a descrição da autora nesses trechos me atingiu em cheio, o desalento da moça, a frustração, a aflição, a falta de cuidado e perspectiva, a solidão. Já tá no kindle pra reler, vamos ver se continua impactante.
"Velhas amigas", organizado pela bruxa, ops, jornalista Sonia Hirsch, é uma coletânea que fala sobre o processo de envelhecimento feminino. Algumas das co-autoras escreveram sobre a importância da preservação dos dentes até o fim da vida para garantir um bom equilíbrio e me senti em paz, porque, de alguma maneira, o tratamento que me esforço pra finalizar agora vai ao encontro dessas reflexões. Tô no caminho certo.
Não tenho tatuagens, mas tenho atração e curiosidade por elas. Uma das artistas tatuadoras que sigo no Instagram mostrou um trabalho chamado "Dente", que é o nome do gato da cliente. Achei incrível.
Sou mesmo essa metamorfose ambulante, vai... ;-)

Comments